terça-feira, 4 de agosto de 2009

Como cria o cérebro a sensação de um Eu?


O cientista cognitivo David Chalmers chama-lhe “o problema fundamental”: como é que os processos físicos do nosso cérebro dão origem à experiência subjectiva? O neuropsicólogo e escritor Paul Broks coloca-o de outro modo: como é que o quilo e meio de carne que constitui o nosso cérebro se transforma em mente?

Esta é talvez a maior de todas as questões filosóficas e científicas. Pede-nos que pensemos no que somos, para além da nossa pele e osso e dos nossos cem mil milhões de células cerebrais. Reflecte o modo como esse “tu” consciente se eleva da muda escuridão da caixa cerebral para um mundo de lugares e de pessoas, prazer e dor, amor e perda. Quer saber quem é “tu”. 

A resposta é desconcertantemente simples: não és quem julgas ser. Paul Broks, no seu belo livro, Into the Silent Land, Travels in Neuropsychology, revela amistosamente o equívoco que de forma tão instintiva formamos a nosso respeito: o nosso princípio de que a primeira pessoa pronominal do singular, “Eu”, descreve uma unidade interna.


“Acordo de manhã; vou para o trabalho; sinto-me feliz quando as coisas correm bem e frustrado quando não correm; mantenho certas crenças e exprimo opiniões variadas; gostava mais de Beethoven, mas agora prefiro Mozart; gosto mais de chocolate do que de cheesecake; agradam-me os passeios no campo; sustento que as pessoas deviam ser boas umas para as outras, e sinto-me mal se faço algo de errado; ajo, sinto, penso, creio, envelheço e noutras coisas também mudo. Mas aí estou “eu” sempre no centro das coisas. E este “eu” é o quê? O experienciador das experiências? O pensador dos pensamentos? O agente dos actos? O facto nu e cru é que não há nenhum “eu” por detrás do “eu” gramatical.”


Isto, claro, é muito difícil de aceitar. 


Tentemos outra abordagem. Enquanto lê isto, é mais que provável que o leitor esteja a ouvir uma vozinha dentro da sua cabeça. Vejamos: de quem é essa vozinha? É sua? É minha? Lembre-se agora da discussão recente que manteve com a pessoa amada. Surgiu agora uma outra voz? a da pessoa amada, talvez? A da sua mãe? Escute-a por um instante. Recapitule a discussão. Oiça a crítica que lhe fizeram e lembre-se da sua resposta. Agora são duas vozes — e talvez também uma terceira que se pôs a comentar: “Mas eu é que tenho razão!” Quem são então essas vozes? E quem é esse que continua a ler durante o lapso em que elas prosseguem a altercação? Quem é “você”?

A verdade é que somos divisos e descontínuos e que os processos mentais subjacentes à sensação de um eu próprio — sentimentos, pensamentos, memórias — estão espalhados por diferentes áreas do cérebro. Não há um núcleo central, um ponto especial de convergência, uma essência, um ego, um “mim”. Unificamo-nos — quando o fazemos — como num trabalho de ficção. Os nossos cérebros são máquinas de contar histórias. E o “eu” é uma história. 

Mas, como já foi dito, isto é muito difícil de aceitar. E essa dificuldade é que inspirou este ensaio sob a forma de teatro. 


Mick Gordon

(tradução de Francisco Nicéforo)


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